terça-feira, 11 de dezembro de 2007

CAPÍTULO IV

Como de costume, o Beco da Lamparina se encontrava às escuras. Há cerca de dois meses o único poste aqui existente está com a lâmpada queimada. Algo irônico para um beco que tem um nome desses. Mas acontece que os vândalos que trafegam por estes arrabaldes parecem ter ódio à luz e horror à claridade. Como no soneto de Florbela.

Experimentei uma enorme sensação de alívio assim que botei o pé no terreiro de casa. Imagino que minhas forças não bastassem para mais cinqüenta ou cem metros de caminhada. Um cão que dormitava junto ao muro debandou com a minha presença.

Lívido, o suor escorrendo pelas têmporas frias, abri calmamente o portão e tornei a fechá-lo com a mesma vagareza. A porta estava aberta. Encontrei Alice diante da televisão, vendo a novela.

— Mas já? — comentou sem retirar os olhos da tevê — Pensei que só voltasse depois das onze. Agora que são nove e meia...

— Tive que sair mais cedo; aconteceu aquilo de novo. — disse e fui passando para o quarto.

Alice despregou-se do sofá e veio atrás de mim. Ainda não se tinha apercebido da minha situação. Somente quando acendi a luz foi que notou o meu estado deplorável.

— Meu Deus!... — murmurou com os olhos arregalados, segurando entre as mãos as bochechas muito pálidas.

— Como foi isso?

— Ralei-me na queda.

— De que jeito? Diga exatamente o que houve.

— Depois. Agora não me sinto bem; preciso tomar um banho.

— Vou pegar uma toalha.

Sentia-me realmente exausto; despi-me com vagar e desânimo. Foi nesse minuto que me ocorreu escrever alguma coisa, embora não compreendesse o que seria. Pendurei a calça no armador junto à porta e estendi a camisa no encosto da cadeira, ainda úmida do vômito e da água que me haviam deitado sobre a cabeça no ponto de ônibus.

De repente, próximo à janela, explodiu a laúza corriqueira dos gatos em suas danações dentro da noite periférica. Assustei-me com a tropelia dos felinos. Um vigia apitou no beco, a plenos pulmões. Outro o imitou nalguma rua distante. Empurrei os sapatos para debaixo da cama e calcei as sandálias de borracha.

Alice retornou com a toalha, que fora apanhar no arame do quintal. Os seus olhos, grandes por natureza, continuavam aboticados:

— Darei uma olhada nesses ferimentos quando você voltar do banho. Ali na caixa dos remédios deve ter algo que sirva. — disse-me com voz enternecida. Não duvido que aquela frase diligente buscasse esconder um princípio de choro. Embora não me deseje mais como homem, Alice manifesta por mim um profundo respeito e admiração.

Atravessei a sala enrolado na toalha.

— Vou esquentando o seu jantar.

— Não quero comer.

— Mas precisa... — argumentou — Faça um esforço. Não pode é ficar de estômago vazio.

— Deixe ver se melhoro.

Segui para o banheiro, que fica fora da casa, pegado ao alpendre da cozinha. Acompanhou-me até ali a desagradável lembrança do relógio. Não se tratava de nenhum Rolex, é claro, mas tinha o seu valor sentimental. Minha esposa o comprara na época em que trabalhava na Riachuelo, o nosso namoro ainda pelo quarto mês.

Debaixo do chuveiro, como geralmente ocorre, senti uma discreta excitação me intumescendo o membro. Envolvi-o com farta espuma, senti-o deslizar na palma da mão, avolumar-se entre os dedos e enrijecer feito um músculo de atleta. A imagem de Ramona apareceu-me ali, lúbrica, voluptuosa. Recordei-lhe os seios firmes, as nádegas cheias. Embalde. Ramona se tinha distanciado bastante. Além disso, nas condições em que me via, não pude dar seqüência ao solitário exercício.

Quando retornei, um tanto menos acabrunhado, Alice providenciou um paliativo para as minhas chagas. Mas não toquei na comida que havia numa panela em cima da mesa.

— Fiz aquela sopinha que você gosta.

Não adiantou. Murmurei uns argumentos e consegui trocar a sopa por uma xícara de chá. Depois me enfiei no quarto, apaguei a luz e me estendi na cama. Nisso voltei a refletir sobre a necessidade de escrever estas linhas. Alice demorou-se organizando a cozinha e eu adormeci em meio a lucubrações, tomado por um enorme desejo de vingança.

— Um romance!