sábado, 24 de novembro de 2007

CAPÍTULO II

Olhei com desgosto o meu pulso esquerdo, de onde desaparecera o relógio que Alice me havia dado quando completei trinta e dois anos. Indignou-me pensar que o tivessem subtraído de mim durante o tempo em que estive desacordado.

Abanei a cabeça para esquecer o relógio, que estava sem jeito. Esforcei-me por recordar a moça do vestidinho azul. De onde teria saído, nestes tempos de cólera, alma tão piedosa?...

O vento que entrava pela janela me remexia os cabelos, contribuía para enxugar a camisa molhada de vômito. Ainda restava o mau cheiro entranhado no tecido. A senhora gorda que havia sentado junto a mim quinze minutos atrás decidiu-se por continuar o resto da viagem em pé.

Observei que de quando em quando ela atirava em minha direção um olhar de repulsa. Deduzi que houvesse respirado algum aroma inconveniente. Encolhi-me no banco.

Das afecções que me haviam lançado por terra, persistiam o embrulho no estômago e a dor de cabeça. Os solavancos do veículo aumentavam o mal-estar. Também a musculatura dos ombros até o pescoço ardia feito brasa. As mãos continuavam ligeiramente trêmulas; um princípio de cãibra se agitava na panturrilha direita.

O ônibus ia cruzando a ponte Juvêncio Rosendo. Lá embaixo, numa e noutra margem do rio, em meio à imundície e à treva, enxerguei o foco miúdo das luminárias de querosene que clareavam precárias habitações. Um mocambo de trinta a cinqüenta casebres de pau-a-pique, folhas-de-flandres e tábuas apodrecidas.

Naquele ponto, como sabem os de Mossoró, degrada-se uma gente miserável que políticos malandros desta cidade prometem assistir a cada eleição que se aproxima. O próprio rio, outrora de águas límpidas e de boa pesca, hoje agoniza em conseqüência da empulhação administrativa.

O carro prosseguia na Presidente Dutra, já nas imediações da concessionária Honda. Uma estudante que subiu no ponto dos Correios, de cabelos escuros e óculos pequenininhos, recordou-me a moça do vestido azul. Tal lembrança mexeu comigo, apertou-me o coração. Pensei no relógio que me roubaram e senti vontade de esculachar a todos, especialmente a senhora gorda, que me olhava com repugnância.

— Gentalha escrota!

Possuo esses acessos de irritação. Sou hoje um homem desagradável, um tipo mau-caráter, extremamente revoltado e nada tolerante. Perdi aquela ternura que eu tinha, aquele sorriso franco, aquela vocação à alegria e o pendor à concórdia. Esta cidade me fez assim: um poço de revolta. Não hesitarei em desancar essa corja bem nutrida e rosada. Que me aguardem os piratas da imprensa, as múmias da Academia, a grã-finagem toda, os figurões intocáveis, os queridinhos e os percevejos da alta-roda.

Aqui, entrançando por gabinetes, escritórios e ante-salas do oficialismo, jornalistas de aluguel negociam matérias abertamente como verdadeiras prostitutas no baixo meretrício da informação, atuando no grosso e no varejo da notícia. Os jornais estão cheios dessa escória.

Vigaristas como Gilberto Barata, Luís Rola-Bosta e Mário Mosca infestam a Gazeta de Negócios. No Correio do Alarde há o Walter Bicudo, o Juarez Galeno e o Chagas Silveira. A Tribuna Mossoroense continua com Augusto Cigarra, Álvaro Medeiros, Pedro Mutuca e Lacaio Diniz. No Jornal Putrefato, apesar da fedentina, segue a vida fácil de Leonardo Santana, Ananias Pequeno, Wanderlei Marinho, Cipriano Raposo e Gonçalo Formiga.

— Ruma de patifes!

Ali no ônibus, entretanto, não esculachei ninguém, mantive a minha fúria no plano das intenções. Aliviei-me num suspiro e procurei me distrair olhando pela janela. Na esquina oposta à igreja de São Manoel pude avistar a bodega de Agnaldo Nunes, já de portas fechadas àquela hora. De outras vezes, quando retorno do Centro a pé, encosto-me ao balcão desse meu amigo para descansar as pernas e botar a conversa em dia. Geralmente chego sem fôlego e sem assunto.

Aos trinta e sete anos, embora pareça absurdo, tenho a nítida sensação de que a minha juventude começa a esvair-se. Daí a dificuldade para reaver o fôlego extraviado ao longo da avenida. Porém Agnaldo, além de boa-praça e poeta bissexto, é ótimo conversador. Dá-me notícia de tudo o que se passa nesses inferninhos intelectuais.
Não entendo como consegue manter-se tão informado sem desvincular-se daquele balcão. Aponta-me um tamborete junto à parede e a crônica da cidade me é relatada com riqueza de detalhes, aqui e ali interrompida por algum freguês que chega para comprar.

É um tipo simpático e muito cordial. Logo que me vê subindo a calçada, o poeta bodegueiro se antecipa:

— Opa, rapaz! Eu estava mesmo esperando que você aparecesse. Já sabe da nova?

Preciso visitar Agnaldo Nunes.

domingo, 18 de novembro de 2007

CAPÍTULO I

Dedico este livro à memória de Vicente Ferreira de Sousa,
meu honrado e extremoso pai, que me soube explicar
os riscos da palavra e as vantagens do silêncio.
A Marilda Pereira de Sousa (minha mãe)
e a cada um dos meus oito irmãos.


“O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.”
(Gregório de Matos)


Tive ainda que esperar por quase uma hora na parada do Hotel Caraúbas. Só então é que apareceu a lata velha que me trouxe a este subúrbio. Retirei da carteira a última cédula que me restava — uma nota de cinco reais. Paguei a tarifa de um e cinqüenta e o motorista me deu o troco em moedas de variados tamanhos e diferentes valores.

O carro avançou na Murilo Rosendo, pegou a Mário Negócio e cruzou o semáforo da Geraldo Rosendo. Daí seguiu na Marechal Deodoro até manobrarmos na Prudente de Morais. Logo em seguida atravessamos a Alberto Maranhão e o ônibus enrolou à esquerda na Juvenal Lamartine. Esquivei-me entre os passageiros e me dirigi às cadeiras no fundo do veículo. Acomodei-me nos últimos bancos, preocupado com evitar que me vissem os ferimentos do braço. Tentava relaxar. Inclinei-me para a frente e escancarei as duas janelas que tinha ao meu alcance.

Na Juvenal Lamartine, assim que o veículo fez a curva, avistei a maternidade Américo Rosendo. Três quarteirões adiante estava a clínica Olívia Rosendo. Na Augusto Severo com a Rio Branco, bem próximo à Estação das Artes Irineu Rosendo, reluz o monumento de mármore do Teatro Municipal Demóstenes Rosendo, uma suntuosa homenagem ao prefeito que governou este município durante quatro mandatos.

Como vêem, há pouca coisa em Mossoró que não seja Rosendo. O eminente antropônimo aparece ainda em pelo menos duas dezenas de escolas, prontos-socorros, ginásios de esporte, casas lotéricas, postos de combustíveis, centros culturais, avenidas, ruas e praças.

A rodoviária da cidade, que um dia chamou-se Esaú Fernandes, agora é Hilário Rosendo. O mesmo se deu com o aeroporto, que deixou de ser Anchieta Vasconcelos para tornar-se Diogo Rosendo. Um conjunto habitacional construído na zona leste, com dinheiro do povo e para o povo, foi inaugurado numa noite como 30 de Setembro, mas já pela manhã o haviam convertido em Vasco Rosendo.

É o puro e simples critério da manutenção e da expansão do mito Rosendo numa terra que eles próprios apelidaram de País de Mossoró. Pois esses Sardanapalos da grande família Rosendo têm essa fome ancestral por homenagens. Na zona oeste, assim que tiveram início as obras de construção de uma faculdade particular e do badaladíssimo Mossoró West Shopping, a remota e esquecida ruazinha Felipe Francelino de Oliveira foi logo transformada (com urgência urgentíssima) em rua João Rosendo da Escócia. Até o vizinho município de São Sebastião, com cerca de quinze mil habitantes, foi rebatizado com sobrenome Rosendo.

Não está longe o dia em que mudarão o nome de Mossoró em Rosendópolis. Pois tudo gira em volta dos Rosendos. São os donos do passado, do presente e do futuro. A história local é escrita conforme o gosto e o consentimento da família Rosendo.

Em junho último, por exemplo, numa autêntica demonstração de puxa-saquismo e sem-vergonheza, o descarado professor Araripe Cassiano, notório lambe-botas da família Rosendo, assombrou o meio intelectual mossoroense com uma ‘descoberta’, no mínimo, estapafúrdia. De acordo com a ciência de berliques e berloques do referido baba-ovo, o velho patriarca Juvêncio Rosendo teria liderado uma das trincheiras que resistiram ao bando de Lampião quando do seu ataque a este município, fato acontecido aos treze de junho de mil novecentos e vinte e sete.

Conversa fiada!

Todo mundo sabe que Juvêncio Rosendo arrepiou carreira de Mossoró (rumo ao litoral) tão logo fora informado da invasão. A menos que tenha organizado a tal trincheira em alto-mar, a salvo dos punhais e da fuzilaria dos cangaceiros. Além disso, segundo rumores que se arrastam desde aquela época, Virgulino só teria posto os pés em Mossoró com o único intuito de matar o então prefeito Rodrigo Fagundes, a mando de Juvêncio Rosendo. Olhando por esse lado, portanto, a famosa exigência de quatrocentos contos de réis que o intrépido bandoleiro fizera ao prefeito, para que a cidade não fosse invadida, torna-se bastante questionável.

Certa feita, durante uma solenidade na Academia Mossoroense de Lesmas, o pesquisador Pinto Miranda, que ocupava o cargo de diretor do Museu Municipal Abílio Rosendo, abordou o assunto:

— Essa história dos quatrocentos contos de réis — exclamou o pesquisador entre os colegas de imortalidade — é pura cascata, um ardil astutamente elaborado por Juvêncio Rosendo para desviar a atenção do público! Tenho em meu poder uma série de documentos que comprovam que o velho Juvêncio, por intermédio do cangaceiro Massilon Benevides Leite, contratou Lampião para dar cabo de Rodrigo Fagundes.

No dia seguinte o Palácio da Sonolência (sede do desgoverno municipal) nomeava um novo diretor para o Museu Abílio Rosendo.

É verdade que não se pode confirmar a teoria de Pinto Miranda, posto que até hoje a suposta documentação por ele referida permanece incógnita, entretanto ninguém garante que Juvêncio Rosendo não tenha culpa no cartório. O certo mesmo é que daí para cá, com o declínio político dos Fagundes, instaurou-se o mandonismo e a supremacia dos Rosendos. São os donos de tudo, craques do arrivismo e da demagogice. De cada dez empregos surgidos em Mossoró, onze pertencem à família Rosendo, que determina quem fica e quem não fica desempregado na terra de Santa Luzia.