domingo, 23 de dezembro de 2007

CAPÍTULO VI

Apesar da noite maldormida, entremeada de inquietações e sobressaltos, levantei-me cedo. Algo raro no meu dia-a-dia. Dificilmente consigo me despregar da cama antes das sete. Hoje, porém, mal o sol raiou no horizonte, coloquei-me de pé e fui ao banheiro urinar. Os ferimentos do antebraço e cotovelo me provocam um certo incômodo. O mertiolate que Alice aplicou sobre as lesões parece ter qualquer influência nesse sentido.

Não foi sem sacrifício que fiz a barba esta manhã. O mais leve contato com a água chega a ser desagradável. Tento reconstruir na memória as feições da moça do vestidinho azul. Mas é inútil. Acredito que nunca mais a reveja. A crise de ontem não foi a primeira. Em janeiro deste ano passei por semelhante infortúnio. Receio que isto se torne rotina. Felizmente, a dor de cabeça desapareceu. Além das arranhaduras no braço direito, há uma outra, bem menor, no dedo mindinho da mão esquerda.

São agora oito e meia. Eu estava ali diante daquele caco de espelho havia pelo menos trinta minutos. Investigava com a ponta dos dedos os locais que ainda necessitavam o toque da lâmina. Nisso ocorreu-me lembrar que exatamente hoje, treze de novembro de dois mil e sete, completa-se um ano que fui expelido da Biblioteca Municipal Aroldo Rosendo.

Recordação estúpida, é verdade, mas logo dei a barba por concluída e aqui me encontro batendo nas teclas do computador feito alguém que se entregasse a um vício. Creio mesmo que dos meus olhos saltam faíscas. Empolga-me considerar que finalmente isto possa dar certo.

— Um romance!

Ainda assim haverá complicações, represálias e ameaças de todo tipo. Ninguém se mete numa coisa dessas e fica impune. O rosendismo tem muitas catapultas, enormes tentáculos com que me buscará atingir. Possui cães de briga em toda parte, asseclas e capachos que investirão contra mim cega e furiosamente. Lacaio Diniz é um desses capachos. Voltará à carga com outros insultos, me chamando de vil e arrogante.

Não que eu pretenda ocultar os meus podres a qualquer custo. Não é isso. Sou um percevejo humano e reconheço o meu charco moral. Mas quem aquele sabujo pensa que é para querer tripudiar sobre mim? Macaco não olha o próprio rabo, eis a questão.

— Um vagabundo! — dirá ele num verso fuleiro.

Terra miserável.

Sentirei receios. Virão as perplexidades, os momentos de angústia, as horas de incerteza, os dias e as noites de solitário desespero. A sensação de fracasso rondando cada parágrafo, ameaçando o fluxo da narrativa. O Nelson Correia, a quem talvez eu submeta dois ou três capítulos, dirá franzindo a testa e coçando o enorme queixo de tubarão-martelo:

— Olha, meu rapaz, isto aqui até que possui umas coisas bem escritas, mas o núcleo da história, o tema central, é que não desperta interesse. Parece-me gratuito. Por que você, ao invés de tentar consertar estes períodos, não escreve um romance que tenha como pano de fundo o ataque de Lampião a Mossoró? Pronto, aí está um assunto interessante.

Ora, que se danem Lampião e a fátua história de bravura desse povo! Não acrescentarei mais uma vírgula a essa diarréia mental. Será possível que tudo nesta cidade tenha que findar em chuva de bala e pirotecnia?! Para o diabo com a pantomima!

Mas o meu crítico tem razão. O assunto que abordo não é nada atrativo. Muito menos agradável. De qualquer modo empregarei os recursos de que disponho para dizer como se deu a minha saída da Biblioteca. Narrarei nalgum momento o diálogo que mantive naquele dia com o todo-poderoso Narciso Rosendo. Para que saibam logo, esse biltre filho-da-puta é secretário chefe de gabinete e irmão da prefeita Gioconda Rosendo.

Foi dali de uma daquelas salas do Palácio da Sonolência que os donos de Mossoró me puseram no olho da rua, há exatos doze meses.