sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Capítulo IX

Almoçamos há meia hora. E Alice, como de costume, estirou uma rede no meio da sala. Dorme feito criança, um braço recuado para as costas, preso sob o torso muito alvo, a boca entreaberta. Ressona. Janelas e portas escancaradas para o nordeste, que não chega.

Inauguro mais este capítulo. Todavia o esforço empregado na composição das últimas notas findou por exaurir-me. A matança de criancinhas pobres na Casa de Saúde Danilo Rosendo ainda me enerva, bole comigo. Sacudo a cabeça para esquecer o morticínio praticado naquele açougue infantil. Mas os pensamentos claudicam, as idéias escasseiam, sufocadas pelo calor, tangidas pelo cansaço.

Procuro me distrair. Inclino-me na cadeira, estiro as pernas para debaixo da escrivaninha. Oscilo a cabeça num movimento aeróbico, circular. Tenho os ombros doridos, as costas suadas, a bunda suada. Levanto-me. Chego até o muro e investigo a rua por entre os combogós. Nada de novo na tarde periférica. O domingo boceja.

Vou ao banheiro. Alivio-me. Urino com abundância. Mas sem a tal festa de espuma de que nos fala Vinicius naquele ‘Soneto de Intimidade’. Lembrei-me disso enquanto balançava o diminuto instrumento. Passo ao lado da pia sem que me anime lavar as mãos.

O que Ramona estará fazendo agora? Não a vejo há muitos meses. E a moça do vestidinho azul (alma minha gentil), por onde andará com seu humano coração? Recordo essas criaturas, fantasmas vivos que de tempos a tempos me rondam os pensamentos. Angustio-me com a certeza de sabê-las tão remotas, tão inacessíveis. Vago pela casa, absorto, alheado como um ser noctâmbulo. Insisto no garimpo das idéias. Arrasto os chinelos na cozinha. Abro a geladeira, bebo um copo d’água.

Vejo a garrafa de café sobre a mesa e me sirvo da preciosa rubiácea. Sim, rubiácea, esse ‘palavrão’ exótico que descobri há duas semanas num romance de costumes do folclorista Sinésio Tavares, antigo membro do Instituto Histórico. Estilo verboso, alambicado, cheio de afetações e maneirismos, mas a rubiácea permaneceu na minha memória como um castigo, uma cicatriz, um remorso inamovível.

A literatura, ao que parece, tornou-se algo demasiado fútil. Experimentalismos anódinos e invencionices tacanhas concorrem para isso, transformam o ofício literário numa coisa trivial, uma arte movimentada muito menos pela vocação que pela vaidade de pseudo-literatos. Sim, é o que estou vendo. O sujeito escreve com o apuro e correção de um jumento decapitado, mas aí os críticos de chocadeira, os resenhistas de orelhas e prefácios, fazem do sambenito gala e todo mundo aprova.

Podia haver prêmios literários conferidos a escritores para que não escrevessem. É o que sugere o português Afonso Lopes Vieira em sua Nova Demanda do Graal. E ele está certo. Concordo plenamente. Porque falta semancol a esses bárbaros da escrita, indivíduos que andam por aí a jactar-se de méritos e glórias que não possuem.

Tudo à custa de uma mídia acaçapante, alienatória. Escreva como um cavalo, pisoteando a gramática e dando coices no idioma, que assim será um best-seller perfeito, um campeão de vendas, um sucesso estrondoso. É a nova tendência, garantem os críticos de chocadeira. Porque as grandes editoras deste país parecem haver descoberto que apostar na ignorância do grande público tornou-se algo muito mais lucrativo.

O guincho de um camundongo me resgata dessa cantilena inglória. Apuro o ouvido.

Um rato balburdia no fogão. Ouço-lhe as patinhas de minúsculas unhas arranhando o metal do forno. A casa está cheia deles. Alice maldiz os roedores, pega da vassoura, larga exclamações, empreende esforços para extingui-los. Inútil. Os catitos fogem, velozes como um rastilho de pólvora. Calculo que existam uns dez ou quinze. Agora não se privam sequer da vadiagem à luz do dia. Politizados, desconfio que se interessem pela programação da tevê. Alguns, de tanta astúcia, parecem humanos: insinuam-se amigáveis, engraçadinhos, dóceis, entretanto são todos desprezíveis, traiçoeiros. Careço adquirir umas ratoeiras, urgentemente. Rato é bicho nocivo.

Esqueço os camundongos. Torno a refletir sobre este capítulo, retomo as lucubrações. Em pé junto à mesa, os olhos mirando um ponto perdido no espaço, deixo-me ficar, a xícara de louça indo e vindo ao lábio trêmulo. Minhas mãos também são trêmulas. Sou um homem trêmulo. Da cabeça aos pés. Ainda mais nas horas de angústia, nos momentos de sufoco, de raiva, de desespero. Contrario-me com certa facilidade. Basta que me depare com algum desses crápulas da política ou da imprensa.

Olho o relógio pregado na parede: vinte minutos para as treze. Divago. O pensamento escapole, arredio como um político reeleito. Sorvo o último gole do café e regresso ao computador. Estalo os dedos, fito mais uma vez o quadrado luminoso da tela. Alice dorme, ressona com estrépito, um braço por sob o tronco, a boca entreaberta. O vento não chega. Os ramos da acácia paralisados, inertes. Lá fora, em meio ao mormaço, um carro de som despeja a propaganda enganosa de uma loja de eletrodomésticos:

— Imperdível! Tudo em até quinze vezes, no cheque e no cartão! — exclama o pregoeiro.

O carro vai-se embora, prometendo mundos e fundos, vantagens incríveis, negócios da China. A zoeira se distancia. Fixo o olho na tela e me recorda percorrer os caminhos labirínticos da internet. A conexão, de ordinário péssima, despenca a todo minuto. Hoje, porém, estou com sorte, avanço pelos arames invisíveis da blogosfera sem maiores tropeços.

Vejo primeiramente a caixa dos e-mails. Emito e respondo mensagens. Depois, já prevendo aborrecimentos, confiro o que dizem os mascarados dos blogs. Sim, mascarados. Mossoró inteira é um grande baile de máscaras. Somos todos mascarados. Uns um pouco menos, outros um bocado mais. Porém todos usamos máscaras. Especialmente os políticos, os jornalistas, os escritores. Amolo-me com a desfaçatez, com o cinismo dos homens da mídia, pseudo-formadores de opinião. Tipos dissimulados, afeitos à vassalagem, entregues a cambalachos e depravações.

A mesma coisa com os jornalecos, as versões eletrônicas dos pasquins impressos. Dois ou três. Não mais que isso. Tenho estômago fraco para suportar o mau cheiro que emana dessas cloacas virtuais do capachismo. Tiram-me do sério, suscitam-me furores, provocam-me náusea. Nem mesmo entendo o que diabos ainda me leva a desperdiçar o meu tempo examinando os dejetos de uma imprensa tão calhorda.

Mossoró não se emenda, vai de mal a pior. As pessoas se deixam levar por um ufanismo tolo, insensato. Tudo aqui é grotescamente espetacularizado. Uma terra que fez do pão e do circo a sua identidade cultural e que, por isso mesmo, não tem identidade cultural nenhuma. Não nascemos de um processo civilizador, mas da evolução de uma encruzilhada mercantil, de um entreposto, coisa assim. Aqui, até a liberdade é uma farsa gritante. O povo é escravo da mentira, ilude-se com o faz-de-conta.

Estamos longe, muito longe, de toda essa cascata desenvolvimentista que os Rosendos e seus marqueteiros delirantes alardeiam através dos canais de mídia. A realidade é bem outra. Muito diversa da propaganda fabricada pelo Palácio da Sonolência. Ainda assim os Rosendos reforçam a mentira, capricham no engodo, apostam na pirotecnia. Querem fazer crer lá fora que a vida nesta comuna anda às mil maravilhas, como se o município inteiro respirasse satisfação e transpirasse progresso.

— Uma ova!

Não pode haver progresso numa terra que se ufana de tanta coisa, que se diz capital disso e daquilo, enquanto suas criancinhas pobres, recém-nascidas, morrem à míngua por falta de uma UTI neonatal. Só mesmo em Mossoró. Tão desgraçadamente rica, e tão ricamente desgraçada.

Admito que meu combate à politicalha dos Rosendos tem motivações muito pessoais. Não há por que negar. Mas também é certo, é fato, que estão brincando com a vida de seres humanos, de gente humilde, de crianças pobres, na sinistra Casa de Saúde Danilo Rosendo. Duvido que um açougue desse tipo, onde tantos bebês prematuros sucumbem à míngua, ainda estivesse aberto se não fosse de propriedade de um semideus Rosendo.

Ora! Convenhamos! Há muito que tal espelunca já teria sido fechada. A população já teria ido protestar em praça pública, agitando faixas e brandindo cartazes. As instituições pretensamente sociais e culturais do município, no intuito de se promoverem perante a opinião pública, seriam as primeiras a reagir, a bradar nos veículos de comunicação. A justiça, hoje acovardada, cairia em cima, desceria o malho, cumpriria o seu dever, honraria o próprio nome, e o proprietário da referida espelunca estaria agora no xadrez, vendo o sol nascer quadrado, bem quadradinho.

Mas não. Como se trata de um Rosendo, de um batavo, de um falso nobre de pele rosada, então o povo desta província, a brava gente mossoroense, prefere ser omissa, fazer-se de boba, de desinformada, de cega e de surda. Por isso Lair Rosendo Sobrinho — espécie de Herodes da caatinga — continua livre da cadeia, caçoando, zombando dos raros protestos que ainda pipocam aqui e acolá, certo da impunidade.

É por essas e por outras que não adoro Mossoró.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Capítulo VIII

Dez da manhã. Abro um jornal e constato que a matança de criancinhas pobres na Casa de Saúde Danilo Rosendo continua. Sim, exatamente: continua. Porque não se trata de nenhuma novidade. O caso é antigo, é torpe e hediondo, é pavoroso e revoltante. Mesmo porque nossa justiça — veloz quanto uma lesma paralítica — não se mexe, não cumpre o seu papel, não mete na cadeia tais facínoras. Ao invés, incorre na omissão, atola-se num descaso absurdo, numa leniência criminosa. Finge não ver a prática nefanda de que já foram vítimas centenas, milhares de recém-nascidos.

O periódico, semanário local que circula aos domingos, fala em três mil e oitocentas vítimas, no entanto ressalta que o número de óbitos pode ser ainda maior. Talvez o dobro.

Confesso que não sou de me comover com esses clamores sociais. Tornei-me um homem estóico, um tipo calejado, insociável, misantropo. E se agora ponho o dedo com força nessa ferida é muito menos por solidariedade aos anjinhos que por antagonismo à canalhice dos Rosendos. Mas também é verdade que ninguém que tenha o mínimo senso de compaixão consegue ficar indiferente a tamanho descalabro.

A pouca-vergonha na Casa de Saúde Danilo Rosendo se vem arrastando há cinco ou seis anos. Ali, por falta de uma UTI neonatal, conforme li no periódico, já morreram três mil e oitocentas crianças prematuras. Somente nos últimos seis meses, segundo a tétrica contabilidade do próprio abatedouro infantil, mais de cem bebês agonizaram até a morte. Esses, obviamente, são os filhos da pobreza, os herdeiros da exclusão, os sem casta importante nem sobrenomes pomposos. Pequeninos e desvalidos seres que esta sociedade hipócrita e charlatanesca dissimula por completo.

Quem lhes terá aplicado sentença tão absurda? Que lei bestial é essa que condena recém-nascidos? Não há respostas. A justiça se omite. Prefere ignorar a agonia dos inocentes, a dor dos pais.

O senhor secretário de saúde do Estado, pusilânime até a medula, coaduna com a pantomima, atua sobre o mesmo palco de cinismo e leviandade. Quero ver como seria se a mulher de um crápula como esse precisasse dar à luz no referido açougue da Casa de Saúde Danilo Rosendo. Mas não. De modo algum. Nunca que as risonhas e nutridas senhoras da alta-roda mossoroense precisarão se expor a semelhante infortúnio. Não mesmo. Tais perigos são reservados à bagaceira, ao populacho, aos pais e mães sem dinheiro no bolso, sem talões de cheque nem cartões de crédito.

Já os potentados de Mossoró, pessoas que de janeiro a janeiro se promovem nas colunas sociais como caridosas, como solidárias, homens e mulheres tidos e havidos como benfeitores, como tipos beneméritos, filantropos e coisa e tal, todos estão quietos, caladinhos. Fingem não ver o morticínio. Nenhum até agora emitiu um único protesto, nenhuma admoestação, sequer uma nota de repúdio contra a monstruosidade que se pratica na Casa de Saúde Danilo Rosendo. Nada! Apenas o silêncio. Os benfeitores perderam a língua. Nenhuma rusga, nenhum rasgo de indignação. Não querem nada com isso. Não estão nem aí para a miséria alheia.

Que morram mais bebês. Ninguém se importa com eles. É a lei da selva. O senso do umbiguismo. O salve-se quem puder. Apenas a elite financeira há de resistir. São os donos do capital. A ralé que se dane, que fique ao deus-dará, que se estrepe de verde-e-amarelo com a sua ignorância cultural e política. Sempre foi assim. Desde a Roma antiga. De Júlio César a Rômulo Augusto, de Gengis Khan a Napoleão, de Mussolini a Hitler, de Salazar a Pinochet, de Stalin a Gorbatchov, de Mao Tsé-tung a Saddam Hussein, de Fulgêncio Batista a Fidel Castro, de Vargas a Figueiredo.

O mais é jogo de cena, teatro de pícaros. Porque esta, repito, é a Mossoró da gente deles — dos césares Rosendos, dos filisteus da rapinagem pública, dos indigentes mentais. Uma estirpe de gabirus e ratazanas, um grêmio de pilantras e larápios. Casta nociva, laia de marreteiros. É esse elenco de notáveis inúteis que decide os rumos de toda uma cidade. Bandidos do colarinho-branco. Avançam sobre os recursos do erário feito assim carrapatos que se grudassem aos testículos de um cão felpudo.

— Canalhas!

Enquanto isso a maternidade do caos segue dizimando as criancinhas pobres deste município. Ali, num rito perverso, nega-se às mães humildes o simples direito de acalentarem os seus rebentos, vítimas da negligência e da omissão. Já as bem-aventuradas, mulheres de melhor condição financeira, essas, invariavelmente, têm ido parir as suas crias em Natal ou Fortaleza. Ainda mais nos últimos tempos, quando o assassínio de bebês naquele centro hospitalar cresceu de forma assustadora.

O dono do sinistro abatedouro é o médico, empresário e político corrupto Lair Rosendo Sobrinho. Um completo filho-da-puta! Esse escroque e aramista da politicalha oestana, que vai cumprindo o seu terceiro mandato como deputado federal, sempre posando de filantropo e benemérito diante da classe ignara, açambarcou vultosas quantias junto à União para instalar uma UTI neonatal que jamais saiu do papel.

Jogo de cena. Demagogia pura. Embuste que o funâmbulo patife ainda teve a coragem de alardear nos veículos de comunicação que possui. É o que estou dizendo. Além da maternidade, o falso filantropo é dono também de um canal de televisão, de uma rádio pirata e de um jornal acéfalo: a Tribuna Mossoroense. Não há o que replicar. Lair Rosendo Sobrinho deu mais um golpe na praça. Meteu a grana no bolso e selou o destino dessas criancinhas que nasceram prematuras.

As mulheres pobres de Mossoró, as mães sem recurso, as desvalidas, aquelas humílimas e infelizes criaturas cuja miséria ancestral se lhes estampa nos rostos melancólicos, essas continuarão vendo os seus rebentos perecerem à míngua, entregues a uma sorte deplorável.

Três mil e oitocentas vidas ceifadas pela postura torpe e ignóbil do medicastro Lair Rosendo Sobrinho — o esculápio da morte. Não por acaso esse risonho coveiro da pediatria suburbana é primo legítimo da senhora prefeita Gioconda Rosendo. Porque a desfaçatez, o canalhismo e a vigarice são características bem próprias da grande família.

Enoja-me pensar que tanta vileza ficou encoberta durante tanto tempo. Escândalo que só veio à tona porque uma antiga funcionária do abatedouro infantil, sentindo-se ludibriada nos seus direitos trabalhistas, resolveu denunciar o ex-patrão. Curioso é que nunca nenhum jornal ou jornalista destes subúrbios havia escrito uma única linha a esse respeito. A maior parte alegando desconhecimento do fato. Vivêssemos numa terra de homens, não de machos e veste-calças, há muito que toda essa ignomínia já teria sido exemplarmente castigada, coibida.

Quantos inocentes, crianças pobres, ainda terão que pagar com a própria vida pelo banditismo político dos Rosendos? Onde estão os benfeitores, os paladinos desta cidade? Cadê o Lions Club, o Rotary Club, a OAB, a Maçonaria, o Ministério Público, a Igreja Católica, os conselhos de proteção à criança e ao adolescente, sempre tão omissos na defesa dos necessitados? Onde se meteram os formadores de opinião? Cadê os literatos, os poetas, o Instituto Cultural, a Academia, os imortais?... Ninguém se apresenta. Estão todos com o rabo enfiado entre as pernas, acovardados, fingindo-se de cegos e de surdos. Não há quem puna por esses inocentes. Muito menos há esperança de que essa horda de sanguessugas largue as tetas do poder.

Fecho o periódico, completamente enojado. Não raro me acomete uma antiga náusea, um repetido asco, uma telúrica vergonha de haver nascido numa terra como esta. Pois não posso ter orgulho de um povo que se acovarda tanto, muito menos adorar uma cidade onde magarefes travestidos de pediatras exterminam criancinhas pobres.

Lair Rosendo Sobrinho continua tranqüilo, certo da impunidade, caçoando do sofrimento alheio, metendo os pés pelas mãos e colecionando óbitos. É muita iniqüidade! Nem o temido cangaceiro Jararaca, injustamente acusado de espetar criancinhas na ponta de seu punhal, seria capaz de tanta barbaridade contra os pequeninos.

Bato com força nas teclas do computador e não consigo exprimir o que penso sobre esse povo que se conserva impassível enquanto suas crianças são mortas no açougue que o médico Lair Rosendo Sobrinho — num acinte zombeteiro à vida — apelidou de Casa de Saúde Danilo Rosendo.
Recosto-me na cadeira. Sinto-me exausto. O raciocínio emperra, as palavras se esgotam. Medito sobre a vilania dessa canalha e já não sei o que dizer. Exceto que tudo isso me causa nojo. Muito nojo.

domingo, 30 de dezembro de 2007

CAPÍTULO VII

Sim, é verdade. Não sou flor que se cheire. Tenho os meus podres e espinhos como qualquer um desses risonhos canalhas que esta cidade tanto aplaude e bajula. A diferença, no entanto, é que não vivo posando de íntegro e honrado através dos veículos de imprensa. Não me presto a esse tipo de coisa. Sou um mau-caráter e acabou-se. Ovelha negra, persona non grata, espécie de leproso que esta gente hipócrita lastima e repele.

Meu nome não figura nos rapapés das colunas de aluguel. Não tenho espaço nessas pútridas seções da imprensa louvaminheira. Mesmo porque não disponho de presentinhos com que possa conquistar a simpatia dessa laia de vendidos. Pusilânimes safados! Olham-me assim como a um marginal, um cão sarnento, um percevejo humano. Não, definitivamente não! Aqui ninguém me aprova. Receiam o gênio atrabiliário dos Rosendos. Porque todos têm um preço, uma etiqueta, um código de barras.

Amigos que freqüentavam minha casa pelo menos uma vez por semana, movidos por grandes afinidades e efusiva bonomia, hoje passam ao largo deste endereço proibido. Riscaram dos seus mapas afetivos o bairro do Cantagalo e o Beco da Lamparina.

Desapareceram daqui, entre outros, o poeta Gotardo Ladeira, o cantor Fernando Cunha, a cronista Eneida Santos, o pintor José Mesquita, a doutora Cíntia Freire, o juiz Alfredo Gomes e o bancário Ernesto Mota. Elementos de boa conduta, com relevo na sociedade e destaque na vida intelectual do município. Profissionais bem-sucedidos, homens e mulheres romanticamente dominados pelo micróbio da literatura.

Tudo muito bonito. Tudo na maior confluência. Muita empatia e reciprocidade. A arte vencendo barreiras, alargando horizontes e aproximando corações. Súbito, de repente feito um mal incurável, toda essa nata de letrados picou a mula. Escafedeu-se.

É verdade que nem todos tomaram chá de sumiço; alguns ainda aparecem vez por outra com sincera benquerença e disfarçado receio. Já outros, talvez por mera precaução, colocaram películas escuras nos vidros dos carros e só costumam vir à noite.

É que não desejam abespinhar a ditadura cor-de-rosa. Temem a sanha dos Rosendos. Vai para um século que essa gente deita e rola nesta cidade. E hão de continuar por muito mais tempo. Alternam-se no poder com extrema habilidade e inigualável desempenho. Suas digitais estão em tudo o que é de orgia e depravação com o dinheiro público. Alastram-se pelo tecido econômico do município como terrível metástase. E o povo se rende à gatunagem, mostra-se passivo, seviciado, sucumbido perante o regime torpe e discricionário da grande malta de picaretas.

Pois a família Rosendo não encontra a menor resistência à sua avassaladora escrita de monopólio e mandonismo político. Os que se dizem de esquerda são todos bidestros, giletes, cortam dos dois lados e atuam apenas como moedas de troca, vendendo-se despudoradamente nos períodos de eleição como putas de beira de estrada. Em Mossoró, portanto, os herdeiros do patriarca Juvêncio Rosendo não temem nem mesmo a Deus na disputa pelo pelos currais de eleitores. Desempenham, a um só tempo, os papéis de governo, de oposição e, num cúmulo de cinismo e descaramento, ainda há Rosendo que se apresenta ao eleitorado como alternativa.

Safadeza! E Mossoró não reage. Aceita o descalabro, permite a sangria de suas riquezas, coaduna com o desvirtuamento de sua história. Um povo que se habituou à canalhice, que perdeu a capacidade de se indignar. Os Rosendos mandam e desmandam. Casam e batizam. Deitam e rolam. Não há heróis nem resistentes. Mossoró está imersa na mais aguda corrupção, entregue à bandalheira, dominada por mãos infames.

Confiante na impunidade, o falecido deputado Vasco Rosendo, entre um porre e outro, colocava os órgãos genitais para fora das calças e mijava em plena via pública. Feito um cão vadio que demarcasse o seu território. E nunca jamais esse pústula sofreu qualquer admoestação por parte de um delegado de polícia ou juiz de direito destes cafundós-do-judas. Ao contrário, os homens da lei sempre prestigiavam as pândegas e rega-bofes que o poderoso deputado costumava promover em sua residência de praia.

Não costumo dar palpite em política, até por uma questão de higiene mental, mas não posso silenciar, fazer de conta que não tenho nada a ver com isso. Todos somos responsáveis (ou irresponsáveis) pelos governos que aí estão, por cada um desses vampiros e sanguessugas do erário mossoroense. Não é possível que uma cidade como esta, com fama de valente e libertária, permaneça insensível diante de toda essa libertinagem que os Rosendos políticos (sem exceção!) vêm praticando com a verba pública.

Pois o momento é grave, gravíssimo! Ou esse povo se dá ao respeito ou isto aqui se transforma de uma vez por todas em casa-da-mãe-joana, num prostíbulo institucionalizado, mantido e nutrido a expensas do contribuinte mossoroense, do cidadão honesto e trabalhador.

Escrevo estas impressões ignorando conseqüências. Mas estou certo de que mais cedo ou mais tarde sofrerei na pele a ira dos poderosos. Terei o meu nome atacado e combatido em qualquer esquina desta urbe. Os remoques despencarão sobre mim como chuva de canivetes. Não é possível criticar uma gente dessa esfera e permanecer incólume. De toda parte surgirá um Lacaio Diniz querendo tomar as dores por essa cambulha de gabirus e ratazanas que saqueiam os cofres públicos. Outros há que seguirão o mesmo comportamento agressivo e bajulatório de Lacaio Diniz.

Indivíduos amorfos, de índole mexeriqueira e mentes tacanhas, alheios à própria basbaquice e pequenez, não hesitarão em tomar parte nessa escrota campanha de marginalização que os Rosendos vêm movendo contra mim nos últimos seis meses.

Em sua coluna no Jornal Putrefato, em troca de um maço de cigarros e de uma xícara de café, arrimado em conceitos caducos e frases de lana-caprina, o cronista e gramaticóide Gonçalo Formiga, das figuras mais contraditórias e venais da intelectualidade mossoroense, deve sair-se com provocações dessa natureza:

— Eu, de minha parte, não dou ouvidos a ignorantes. Não gasto vela de boa cera com defunto ruim. Porém concordo que esse pistoleiro da escrita está merecendo uma lição. — dirá finalmente com a moralidade e o bovarismo das prostitutas que negociam pequenos prazeres e falsos orgasmos nos ignóbeis conventilhos do Alto do Louvor.

Amoitados na Gazeta de Negócios, sem esmeros de sintaxe nem floreios gramaticais, Mário Mosca, Luís Rola-Bosta e Gilberto Barata não pouparão insultos nem exclamações. Farão minha caveira perante o público leitor, fabricarão calúnias de toda espécie e posarão de moralistas. Na Tribuna Mossoroense, dando o bote e escondendo a unha, o chefe de redação Augusto Cigarra atiçará a sua matilha de cães teleguiados.

Entre esses, disposto a latir e a morder, encontra-se o diretor administrativo Adalberto Medeiros. Gerentezinho de merda, sujeito medíocre e descuidista profissional, esse bunda-suja publicará na edição de domingo um daqueles artigos cretinos que parece redigir com os dedos dos pés.

— Alma sebosa!

Não esqueço as humilhações, o assédio moral que experimentei sob as vistas daquele tiranete de uma figa. Três anos como revisor de textos e repórter de cultura na Tribuna Mossoroense. Nunca fui tão humilhado, tão oprimido. A cretinice e o despotismo de Adalberto Medeiros deixaram marcas profundas e interferiram de maneira brutal na minha personalidade. Chegará o momento daquele déspota!

Deixem estar.

domingo, 23 de dezembro de 2007

CAPÍTULO VI

Apesar da noite maldormida, entremeada de inquietações e sobressaltos, levantei-me cedo. Algo raro no meu dia-a-dia. Dificilmente consigo me despregar da cama antes das sete. Hoje, porém, mal o sol raiou no horizonte, coloquei-me de pé e fui ao banheiro urinar. Os ferimentos do antebraço e cotovelo me provocam um certo incômodo. O mertiolate que Alice aplicou sobre as lesões parece ter qualquer influência nesse sentido.

Não foi sem sacrifício que fiz a barba esta manhã. O mais leve contato com a água chega a ser desagradável. Tento reconstruir na memória as feições da moça do vestidinho azul. Mas é inútil. Acredito que nunca mais a reveja. A crise de ontem não foi a primeira. Em janeiro deste ano passei por semelhante infortúnio. Receio que isto se torne rotina. Felizmente, a dor de cabeça desapareceu. Além das arranhaduras no braço direito, há uma outra, bem menor, no dedo mindinho da mão esquerda.

São agora oito e meia. Eu estava ali diante daquele caco de espelho havia pelo menos trinta minutos. Investigava com a ponta dos dedos os locais que ainda necessitavam o toque da lâmina. Nisso ocorreu-me lembrar que exatamente hoje, treze de novembro de dois mil e sete, completa-se um ano que fui expelido da Biblioteca Municipal Aroldo Rosendo.

Recordação estúpida, é verdade, mas logo dei a barba por concluída e aqui me encontro batendo nas teclas do computador feito alguém que se entregasse a um vício. Creio mesmo que dos meus olhos saltam faíscas. Empolga-me considerar que finalmente isto possa dar certo.

— Um romance!

Ainda assim haverá complicações, represálias e ameaças de todo tipo. Ninguém se mete numa coisa dessas e fica impune. O rosendismo tem muitas catapultas, enormes tentáculos com que me buscará atingir. Possui cães de briga em toda parte, asseclas e capachos que investirão contra mim cega e furiosamente. Lacaio Diniz é um desses capachos. Voltará à carga com outros insultos, me chamando de vil e arrogante.

Não que eu pretenda ocultar os meus podres a qualquer custo. Não é isso. Sou um percevejo humano e reconheço o meu charco moral. Mas quem aquele sabujo pensa que é para querer tripudiar sobre mim? Macaco não olha o próprio rabo, eis a questão.

— Um vagabundo! — dirá ele num verso fuleiro.

Terra miserável.

Sentirei receios. Virão as perplexidades, os momentos de angústia, as horas de incerteza, os dias e as noites de solitário desespero. A sensação de fracasso rondando cada parágrafo, ameaçando o fluxo da narrativa. O Nelson Correia, a quem talvez eu submeta dois ou três capítulos, dirá franzindo a testa e coçando o enorme queixo de tubarão-martelo:

— Olha, meu rapaz, isto aqui até que possui umas coisas bem escritas, mas o núcleo da história, o tema central, é que não desperta interesse. Parece-me gratuito. Por que você, ao invés de tentar consertar estes períodos, não escreve um romance que tenha como pano de fundo o ataque de Lampião a Mossoró? Pronto, aí está um assunto interessante.

Ora, que se danem Lampião e a fátua história de bravura desse povo! Não acrescentarei mais uma vírgula a essa diarréia mental. Será possível que tudo nesta cidade tenha que findar em chuva de bala e pirotecnia?! Para o diabo com a pantomima!

Mas o meu crítico tem razão. O assunto que abordo não é nada atrativo. Muito menos agradável. De qualquer modo empregarei os recursos de que disponho para dizer como se deu a minha saída da Biblioteca. Narrarei nalgum momento o diálogo que mantive naquele dia com o todo-poderoso Narciso Rosendo. Para que saibam logo, esse biltre filho-da-puta é secretário chefe de gabinete e irmão da prefeita Gioconda Rosendo.

Foi dali de uma daquelas salas do Palácio da Sonolência que os donos de Mossoró me puseram no olho da rua, há exatos doze meses.

domingo, 16 de dezembro de 2007

CAPÍTULO V

Vejo que isto talvez progrida. Mas durante muito tempo não digitei uma só palavra, as palmas das mãos posicionadas junto ao teclado, as pontas dos dedos transpirando sobre os símbolos gráficos, a mente infértil.

Outra vez se apoderava de mim a velha sensação de vazio. O primeiro entusiasmo se havia perdido entre a pia do banheiro e este quarto, que também utilizo como gabinete de trabalho. Foi o único espaço da casa onde me foi possível acomodar a escrivaninha. Pelo mesmo motivo veio parar aqui a diminuta estante de livros. Cerca de trezentos volumes, dos quais talvez não se possa extrair cinqüenta por cento de boa literatura.

Na prateleira dos autores potiguares, cada vez mais reduzida, mantenho algumas obras que julgo apreciáveis. Mesmo assim não vão além dos quarenta títulos.

Salvo raríssimos exemplos, nossa literatura é uma completa vergonha. Faz-se representar por indivíduos cujo valor artístico não pode ser visto a olho nu. Ainda assim, em meio a gênios boçais e sumidades histriônicas, os impressos abundam nas gráficas e livrarias do Estado numa rapidez assombrosa. Especialmente em Mossoró, onde a vaidade de falsos mecenas e pretensos homens de letras alcança níveis estratosféricos.

Engajados nessa tola perseguição por recordes fantasiosos e troféus auto-oferecidos, escritores e editores mossoroenses publicam toda sorte de apedeutismos literários. Trabalho feito nas coxas, sem a mais mínima responsabilidade nem senso do ridículo. Indivíduos há que sequer o próprio nome conseguem grafar corretamente na capa de suas publicações.

Um cachorro como o dublê de poeta Lacaio Diniz, por exemplo, é autor de burundangas impressas que andam aí pela quarta ou quinta edição. Tudo feito a expensas da Cooperativa Mossoroense de Escritores, da qual é secretário executivo para assuntos de picaretagem e superfaturamento de notas orçamentárias.

Tais falcatruas geralmente acontecem através de ‘arrumadinhos’ que o desonesto esfolador da arte poética vem mantendo com determinado chefe de oficina gráfica da cidade. São engodos e traficâncias dessa natureza que pretendo relatar mais cedo ou mais tarde.

Pois agora esse indivíduo, que até ontem se dizia meu amigo, passou a endereçar-me desaforos na tira de jornal que assina na Tribuna Mossoroense. Isso porque há dois ou três meses publiquei um artigo criticando a política de lama e lodo dos Rosendos. Daí o bobinho da corte municipal tomou para si dores alheias e investiu contra mim com um daqueles sonetos que de tempos a tempos ele teima em cometer.

Falo assim não apenas por causa das ofensas que me dirigiu, mas também por acreditar que mereço coisa melhor. Pois Lacaio Diniz, enquanto sonetista, é um exímio puxa-saco. Espera firmar-se como intelectual nesta província osculando os testículos dos Rosendos.

— Pobre-diabo!

Bem, mas eu falava que tinha perdido metade do entusiasmo que ainda agora me fizera correr do banheiro para esta cadeira aqui no quarto. É que toda e qualquer inquietação desse tipo, de ordinário fugidia, termina por dissipar-se tão logo eu me sente para escrever. Estou acostumado. Foram muitos os alarmes falsos que me apareceram nestes últimos dois anos. Mas eis que recomeço a sentir as palavras faiscando na cabeça. Busco dominar o raciocínio, exercito a memória, e as idéias pouco a pouco se vão articulando na página fluorescente do computador.

Neste momento me encontro inteiramente só. Alice deve ter ido ao mercadinho, onde costuma fazer pequenas compras. Logo estará de volta com alguma coisa com que engendrará o almoço. No mais das vezes, sabendo que fiquei até horas mortas pregado nesta cadeira, tranca a porta sem fazer barulho e me deixa dormindo.

Não foi o que sucedeu à noite de ontem. Cheguei pouco depois das nove e devo ter adormecido por volta das dez e meia. Alice tratou dos meus ferimentos sem exigir-me explicações. Concordou que hoje pela manhã conversaríamos a esse respeito. A verdade, no entanto, é que não há muito o que eu possa explicar a Alice. Eu mesmo não tenho qualquer certeza do que possa estar se passando.

Sinto-me febril e levemente zonzo. Talvez este ímpeto criador não tenha vindo no momento mais oportuno. Mas temo suspender a redação e nunca mais conseguir levá-la adiante. Preciso ao menos concluir este capítulo, que vou engordando sem maiores complicações. Além da tontura e da sensação de febre, meus olhos começam a arder. Penso que um banho frio pudesse atenuar o desconforto.

Olho em volta e examino a pouca mobília, já bastante enfraquecida por anos de uso. O guarda-roupa perdeu uma das quatro portas. O ventilador, agora imóvel sobre um tamborete, geme horrores durante a noite. Com o zíper rompido, a sapateira de napa marrom continua escancarada. Já a cama, esse ninho de que resultam insônias e pesadelos, tem o lastro apoiado com tijolos e o colchão estragou-se todo em ambas as faces.

O mais permanece no seu desalinho matinal: os travesseiros ainda conservam a marca das cabeças que ali se deitaram; uma ponta do lençol resvala sobre o cimento crespo, levemente agitada pela brisa que se filtra através das rótulas da janela.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

CAPÍTULO IV

Como de costume, o Beco da Lamparina se encontrava às escuras. Há cerca de dois meses o único poste aqui existente está com a lâmpada queimada. Algo irônico para um beco que tem um nome desses. Mas acontece que os vândalos que trafegam por estes arrabaldes parecem ter ódio à luz e horror à claridade. Como no soneto de Florbela.

Experimentei uma enorme sensação de alívio assim que botei o pé no terreiro de casa. Imagino que minhas forças não bastassem para mais cinqüenta ou cem metros de caminhada. Um cão que dormitava junto ao muro debandou com a minha presença.

Lívido, o suor escorrendo pelas têmporas frias, abri calmamente o portão e tornei a fechá-lo com a mesma vagareza. A porta estava aberta. Encontrei Alice diante da televisão, vendo a novela.

— Mas já? — comentou sem retirar os olhos da tevê — Pensei que só voltasse depois das onze. Agora que são nove e meia...

— Tive que sair mais cedo; aconteceu aquilo de novo. — disse e fui passando para o quarto.

Alice despregou-se do sofá e veio atrás de mim. Ainda não se tinha apercebido da minha situação. Somente quando acendi a luz foi que notou o meu estado deplorável.

— Meu Deus!... — murmurou com os olhos arregalados, segurando entre as mãos as bochechas muito pálidas.

— Como foi isso?

— Ralei-me na queda.

— De que jeito? Diga exatamente o que houve.

— Depois. Agora não me sinto bem; preciso tomar um banho.

— Vou pegar uma toalha.

Sentia-me realmente exausto; despi-me com vagar e desânimo. Foi nesse minuto que me ocorreu escrever alguma coisa, embora não compreendesse o que seria. Pendurei a calça no armador junto à porta e estendi a camisa no encosto da cadeira, ainda úmida do vômito e da água que me haviam deitado sobre a cabeça no ponto de ônibus.

De repente, próximo à janela, explodiu a laúza corriqueira dos gatos em suas danações dentro da noite periférica. Assustei-me com a tropelia dos felinos. Um vigia apitou no beco, a plenos pulmões. Outro o imitou nalguma rua distante. Empurrei os sapatos para debaixo da cama e calcei as sandálias de borracha.

Alice retornou com a toalha, que fora apanhar no arame do quintal. Os seus olhos, grandes por natureza, continuavam aboticados:

— Darei uma olhada nesses ferimentos quando você voltar do banho. Ali na caixa dos remédios deve ter algo que sirva. — disse-me com voz enternecida. Não duvido que aquela frase diligente buscasse esconder um princípio de choro. Embora não me deseje mais como homem, Alice manifesta por mim um profundo respeito e admiração.

Atravessei a sala enrolado na toalha.

— Vou esquentando o seu jantar.

— Não quero comer.

— Mas precisa... — argumentou — Faça um esforço. Não pode é ficar de estômago vazio.

— Deixe ver se melhoro.

Segui para o banheiro, que fica fora da casa, pegado ao alpendre da cozinha. Acompanhou-me até ali a desagradável lembrança do relógio. Não se tratava de nenhum Rolex, é claro, mas tinha o seu valor sentimental. Minha esposa o comprara na época em que trabalhava na Riachuelo, o nosso namoro ainda pelo quarto mês.

Debaixo do chuveiro, como geralmente ocorre, senti uma discreta excitação me intumescendo o membro. Envolvi-o com farta espuma, senti-o deslizar na palma da mão, avolumar-se entre os dedos e enrijecer feito um músculo de atleta. A imagem de Ramona apareceu-me ali, lúbrica, voluptuosa. Recordei-lhe os seios firmes, as nádegas cheias. Embalde. Ramona se tinha distanciado bastante. Além disso, nas condições em que me via, não pude dar seqüência ao solitário exercício.

Quando retornei, um tanto menos acabrunhado, Alice providenciou um paliativo para as minhas chagas. Mas não toquei na comida que havia numa panela em cima da mesa.

— Fiz aquela sopinha que você gosta.

Não adiantou. Murmurei uns argumentos e consegui trocar a sopa por uma xícara de chá. Depois me enfiei no quarto, apaguei a luz e me estendi na cama. Nisso voltei a refletir sobre a necessidade de escrever estas linhas. Alice demorou-se organizando a cozinha e eu adormeci em meio a lucubrações, tomado por um enorme desejo de vingança.

— Um romance!

sábado, 1 de dezembro de 2007

CAPÍTULO III

Desci na parada em frente ao escritório da Varig. Estudei por algum tempo o fluxo dos automóveis e atravessei. Vim com passos malseguros, claudicando pela Rui Barbosa. Dali até o Beco da Lamparina, no bairro de Pedregulho, levaria mais quinze minutos.

Na esquina do educandário Arco-íris, bem defronte ao terreno em que a meninada costumava bater uma bolinha nos finais de tarde, deparei-me com o gigantesco outdoor da prefeitura, que não estava ali quando passei pela manhã. Na fotografia, com ar de boazinha e sorriso teatral, a prefeita Gioconda Rosendo pegava carona na propaganda de uma obra a que vergonhosamente intitularam de Praça Qualquer-Um-Rosendo.

— Palhaçada!

Meu sangue ferveu e custei a crer no que meus olhos viam. Era a mais nova presepada, a mais nova troça, a mais nova chacota dos Rosendos contra o povo de Mossoró. As máquinas da Secretaria de Urbanismo e Obras já haviam iniciado a terraplanagem e uma fileira de tapumes se tinha erguido numa das margens da rua paralela.

Num período de oito a dez meses, conforme li no imenso cartaz, a tal Praça Qualquer-Um-Rosendo há de ser concluída. Foi a maneira (nada democrática) que a senhora Gioconda Rosendo encontrou para prevenir a todos que aquela obra está oficialmente destinada a servir de homenagem a mais um integrante de sua família.

Eleita sob o signo da leviandade partidária, à custa da bandalheira e da negociata, dona Gioconda é o máximo exemplo do embuste, uma piada de mau gosto. Do ponto de vista técnico, a risonha e risível mulher apresenta o mesmo senso administrativo de uma samambaia. Seu quociente de inteligência é duas vezes inferior ao da mula-sem-cabeça.

Não há na cena política do Estado personagem mais obtusa. Enquanto alguns indivíduos recorrem à cirurgia de redução de estômago para evitar complicações perante a balança, a prefeita de Mossoró parece ter optado pela redução de massa encefálica. Não bastasse isso, a Excelentíssima tem uma assessoria de comunicação que é uma lástima. Logo no seu discurso de posse, querendo afetar humildade, a infeliz oradora declarou:

— Eu sou uma prefeita ninfeta!

Tadinha, a Brooke Shields mossoroense queria mesmo era dizer neófita. Então, a começar pela autoridade máxima deste município, não será difícil avaliar-se o nível intelectual dos que dominam política e financeiramente esta cidade.

Súcia de parasitas!

Nunca ofereceram a esta terra sequer um único nome de que realmente pudéssemos nos orgulhar. Mesmo nascidos em berço de ouro, estudando sempre nas melhores escolas e galardoados com o turismo internacional desde criancinhas, jamais um Rosendo saído destes confins conseguiu ultrapassar os umbrais da própria mediocridade.

Todos, de um modo ou de outro, se especializaram apenas em tirar vantagem da condição política de que a família sempre se beneficiou. São mestres em dilapidar o patrimônio público, em trair o povo humilde, em se nutrir da boa-fé das pessoas feito uma praga de gafanhotos que se precipita sobre uma plantação de milho.

Sim. Exatamente.

Jamais nenhum Rosendo notabilizou-se além fronteiras potiguares como um artista importante, um escritor consagrado, um poeta de escol, um ator famoso, uma atriz de renome, um atleta campeão, um prócer da ciência, um gênio da raça... Não. De jeito algum. Porque só aprenderam mesmo foi a arte de roubar, de mentir, de enganar, de fingir, de corromper. Nunca trouxeram à luz um grande esteta, um bom filólogo, um beletrista, um ás da física, uma glória da música, um talento nacional.

Nada!

Ao invés, preferiram a vida fácil das sinecuras, o regaço do nepotismo e o torpe mister dos colarinhos-brancos. Porque são todos ladrões, exímios picaretas, sanguessugas descarados, formadores de quadrilha, assaltantes da dignidade e da esperança de toda uma gente.

É dessa casta deletéria que provém Gioconda Rosendo. Ei-la debruçada sobre as questões do executivo municipal com a mesma desenvoltura e eficiência com que uma mula coiceira desfilasse sobre uma pista de gelo. O pior é que ninguém parece dar a mínima para os coices e relinchos da senhora prefeita. Os Rosendos degeneram a olhos vistos, mas não soltam as tetas do erário. Até porque não existe oposição. Sequer há resistência. Mossoró é uma terra sem lei, sem ordem e sem progresso. A demagogia, os subornos, a politicagem e o nepotismo prevalecem.

Aqui e acolá, como querendo certificar-se da própria inutilidade, o Ministério Público faz vista grossa, emite uns resmungos, mas termina por enfiar o rabo entre as pernas. A OAB local, espécie de prostituta dos Rosendos políticos, também prevarica. É que metade dos seus sócios está na folha de sinecuras do município. De resto, infelizmente, ninguém diz um pio. A imprensa toda rodando a bolsinha na calçada da prefeitura. O reitor Cláudio Manso atolado na desfaçatez. O edil Júlio França comendo bola na Câmara. Padre Dionísio cuspindo o microfone da rádio.

Magote de venais!

— Eu sou uma prefeita ninfeta!

E houve quem aplaudisse.