domingo, 16 de dezembro de 2007

CAPÍTULO V

Vejo que isto talvez progrida. Mas durante muito tempo não digitei uma só palavra, as palmas das mãos posicionadas junto ao teclado, as pontas dos dedos transpirando sobre os símbolos gráficos, a mente infértil.

Outra vez se apoderava de mim a velha sensação de vazio. O primeiro entusiasmo se havia perdido entre a pia do banheiro e este quarto, que também utilizo como gabinete de trabalho. Foi o único espaço da casa onde me foi possível acomodar a escrivaninha. Pelo mesmo motivo veio parar aqui a diminuta estante de livros. Cerca de trezentos volumes, dos quais talvez não se possa extrair cinqüenta por cento de boa literatura.

Na prateleira dos autores potiguares, cada vez mais reduzida, mantenho algumas obras que julgo apreciáveis. Mesmo assim não vão além dos quarenta títulos.

Salvo raríssimos exemplos, nossa literatura é uma completa vergonha. Faz-se representar por indivíduos cujo valor artístico não pode ser visto a olho nu. Ainda assim, em meio a gênios boçais e sumidades histriônicas, os impressos abundam nas gráficas e livrarias do Estado numa rapidez assombrosa. Especialmente em Mossoró, onde a vaidade de falsos mecenas e pretensos homens de letras alcança níveis estratosféricos.

Engajados nessa tola perseguição por recordes fantasiosos e troféus auto-oferecidos, escritores e editores mossoroenses publicam toda sorte de apedeutismos literários. Trabalho feito nas coxas, sem a mais mínima responsabilidade nem senso do ridículo. Indivíduos há que sequer o próprio nome conseguem grafar corretamente na capa de suas publicações.

Um cachorro como o dublê de poeta Lacaio Diniz, por exemplo, é autor de burundangas impressas que andam aí pela quarta ou quinta edição. Tudo feito a expensas da Cooperativa Mossoroense de Escritores, da qual é secretário executivo para assuntos de picaretagem e superfaturamento de notas orçamentárias.

Tais falcatruas geralmente acontecem através de ‘arrumadinhos’ que o desonesto esfolador da arte poética vem mantendo com determinado chefe de oficina gráfica da cidade. São engodos e traficâncias dessa natureza que pretendo relatar mais cedo ou mais tarde.

Pois agora esse indivíduo, que até ontem se dizia meu amigo, passou a endereçar-me desaforos na tira de jornal que assina na Tribuna Mossoroense. Isso porque há dois ou três meses publiquei um artigo criticando a política de lama e lodo dos Rosendos. Daí o bobinho da corte municipal tomou para si dores alheias e investiu contra mim com um daqueles sonetos que de tempos a tempos ele teima em cometer.

Falo assim não apenas por causa das ofensas que me dirigiu, mas também por acreditar que mereço coisa melhor. Pois Lacaio Diniz, enquanto sonetista, é um exímio puxa-saco. Espera firmar-se como intelectual nesta província osculando os testículos dos Rosendos.

— Pobre-diabo!

Bem, mas eu falava que tinha perdido metade do entusiasmo que ainda agora me fizera correr do banheiro para esta cadeira aqui no quarto. É que toda e qualquer inquietação desse tipo, de ordinário fugidia, termina por dissipar-se tão logo eu me sente para escrever. Estou acostumado. Foram muitos os alarmes falsos que me apareceram nestes últimos dois anos. Mas eis que recomeço a sentir as palavras faiscando na cabeça. Busco dominar o raciocínio, exercito a memória, e as idéias pouco a pouco se vão articulando na página fluorescente do computador.

Neste momento me encontro inteiramente só. Alice deve ter ido ao mercadinho, onde costuma fazer pequenas compras. Logo estará de volta com alguma coisa com que engendrará o almoço. No mais das vezes, sabendo que fiquei até horas mortas pregado nesta cadeira, tranca a porta sem fazer barulho e me deixa dormindo.

Não foi o que sucedeu à noite de ontem. Cheguei pouco depois das nove e devo ter adormecido por volta das dez e meia. Alice tratou dos meus ferimentos sem exigir-me explicações. Concordou que hoje pela manhã conversaríamos a esse respeito. A verdade, no entanto, é que não há muito o que eu possa explicar a Alice. Eu mesmo não tenho qualquer certeza do que possa estar se passando.

Sinto-me febril e levemente zonzo. Talvez este ímpeto criador não tenha vindo no momento mais oportuno. Mas temo suspender a redação e nunca mais conseguir levá-la adiante. Preciso ao menos concluir este capítulo, que vou engordando sem maiores complicações. Além da tontura e da sensação de febre, meus olhos começam a arder. Penso que um banho frio pudesse atenuar o desconforto.

Olho em volta e examino a pouca mobília, já bastante enfraquecida por anos de uso. O guarda-roupa perdeu uma das quatro portas. O ventilador, agora imóvel sobre um tamborete, geme horrores durante a noite. Com o zíper rompido, a sapateira de napa marrom continua escancarada. Já a cama, esse ninho de que resultam insônias e pesadelos, tem o lastro apoiado com tijolos e o colchão estragou-se todo em ambas as faces.

O mais permanece no seu desalinho matinal: os travesseiros ainda conservam a marca das cabeças que ali se deitaram; uma ponta do lençol resvala sobre o cimento crespo, levemente agitada pela brisa que se filtra através das rótulas da janela.

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