segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Capítulo VIII

Dez da manhã. Abro um jornal e constato que a matança de criancinhas pobres na Casa de Saúde Danilo Rosendo continua. Sim, exatamente: continua. Porque não se trata de nenhuma novidade. O caso é antigo, é torpe e hediondo, é pavoroso e revoltante. Mesmo porque nossa justiça — veloz quanto uma lesma paralítica — não se mexe, não cumpre o seu papel, não mete na cadeia tais facínoras. Ao invés, incorre na omissão, atola-se num descaso absurdo, numa leniência criminosa. Finge não ver a prática nefanda de que já foram vítimas centenas, milhares de recém-nascidos.

O periódico, semanário local que circula aos domingos, fala em três mil e oitocentas vítimas, no entanto ressalta que o número de óbitos pode ser ainda maior. Talvez o dobro.

Confesso que não sou de me comover com esses clamores sociais. Tornei-me um homem estóico, um tipo calejado, insociável, misantropo. E se agora ponho o dedo com força nessa ferida é muito menos por solidariedade aos anjinhos que por antagonismo à canalhice dos Rosendos. Mas também é verdade que ninguém que tenha o mínimo senso de compaixão consegue ficar indiferente a tamanho descalabro.

A pouca-vergonha na Casa de Saúde Danilo Rosendo se vem arrastando há cinco ou seis anos. Ali, por falta de uma UTI neonatal, conforme li no periódico, já morreram três mil e oitocentas crianças prematuras. Somente nos últimos seis meses, segundo a tétrica contabilidade do próprio abatedouro infantil, mais de cem bebês agonizaram até a morte. Esses, obviamente, são os filhos da pobreza, os herdeiros da exclusão, os sem casta importante nem sobrenomes pomposos. Pequeninos e desvalidos seres que esta sociedade hipócrita e charlatanesca dissimula por completo.

Quem lhes terá aplicado sentença tão absurda? Que lei bestial é essa que condena recém-nascidos? Não há respostas. A justiça se omite. Prefere ignorar a agonia dos inocentes, a dor dos pais.

O senhor secretário de saúde do Estado, pusilânime até a medula, coaduna com a pantomima, atua sobre o mesmo palco de cinismo e leviandade. Quero ver como seria se a mulher de um crápula como esse precisasse dar à luz no referido açougue da Casa de Saúde Danilo Rosendo. Mas não. De modo algum. Nunca que as risonhas e nutridas senhoras da alta-roda mossoroense precisarão se expor a semelhante infortúnio. Não mesmo. Tais perigos são reservados à bagaceira, ao populacho, aos pais e mães sem dinheiro no bolso, sem talões de cheque nem cartões de crédito.

Já os potentados de Mossoró, pessoas que de janeiro a janeiro se promovem nas colunas sociais como caridosas, como solidárias, homens e mulheres tidos e havidos como benfeitores, como tipos beneméritos, filantropos e coisa e tal, todos estão quietos, caladinhos. Fingem não ver o morticínio. Nenhum até agora emitiu um único protesto, nenhuma admoestação, sequer uma nota de repúdio contra a monstruosidade que se pratica na Casa de Saúde Danilo Rosendo. Nada! Apenas o silêncio. Os benfeitores perderam a língua. Nenhuma rusga, nenhum rasgo de indignação. Não querem nada com isso. Não estão nem aí para a miséria alheia.

Que morram mais bebês. Ninguém se importa com eles. É a lei da selva. O senso do umbiguismo. O salve-se quem puder. Apenas a elite financeira há de resistir. São os donos do capital. A ralé que se dane, que fique ao deus-dará, que se estrepe de verde-e-amarelo com a sua ignorância cultural e política. Sempre foi assim. Desde a Roma antiga. De Júlio César a Rômulo Augusto, de Gengis Khan a Napoleão, de Mussolini a Hitler, de Salazar a Pinochet, de Stalin a Gorbatchov, de Mao Tsé-tung a Saddam Hussein, de Fulgêncio Batista a Fidel Castro, de Vargas a Figueiredo.

O mais é jogo de cena, teatro de pícaros. Porque esta, repito, é a Mossoró da gente deles — dos césares Rosendos, dos filisteus da rapinagem pública, dos indigentes mentais. Uma estirpe de gabirus e ratazanas, um grêmio de pilantras e larápios. Casta nociva, laia de marreteiros. É esse elenco de notáveis inúteis que decide os rumos de toda uma cidade. Bandidos do colarinho-branco. Avançam sobre os recursos do erário feito assim carrapatos que se grudassem aos testículos de um cão felpudo.

— Canalhas!

Enquanto isso a maternidade do caos segue dizimando as criancinhas pobres deste município. Ali, num rito perverso, nega-se às mães humildes o simples direito de acalentarem os seus rebentos, vítimas da negligência e da omissão. Já as bem-aventuradas, mulheres de melhor condição financeira, essas, invariavelmente, têm ido parir as suas crias em Natal ou Fortaleza. Ainda mais nos últimos tempos, quando o assassínio de bebês naquele centro hospitalar cresceu de forma assustadora.

O dono do sinistro abatedouro é o médico, empresário e político corrupto Lair Rosendo Sobrinho. Um completo filho-da-puta! Esse escroque e aramista da politicalha oestana, que vai cumprindo o seu terceiro mandato como deputado federal, sempre posando de filantropo e benemérito diante da classe ignara, açambarcou vultosas quantias junto à União para instalar uma UTI neonatal que jamais saiu do papel.

Jogo de cena. Demagogia pura. Embuste que o funâmbulo patife ainda teve a coragem de alardear nos veículos de comunicação que possui. É o que estou dizendo. Além da maternidade, o falso filantropo é dono também de um canal de televisão, de uma rádio pirata e de um jornal acéfalo: a Tribuna Mossoroense. Não há o que replicar. Lair Rosendo Sobrinho deu mais um golpe na praça. Meteu a grana no bolso e selou o destino dessas criancinhas que nasceram prematuras.

As mulheres pobres de Mossoró, as mães sem recurso, as desvalidas, aquelas humílimas e infelizes criaturas cuja miséria ancestral se lhes estampa nos rostos melancólicos, essas continuarão vendo os seus rebentos perecerem à míngua, entregues a uma sorte deplorável.

Três mil e oitocentas vidas ceifadas pela postura torpe e ignóbil do medicastro Lair Rosendo Sobrinho — o esculápio da morte. Não por acaso esse risonho coveiro da pediatria suburbana é primo legítimo da senhora prefeita Gioconda Rosendo. Porque a desfaçatez, o canalhismo e a vigarice são características bem próprias da grande família.

Enoja-me pensar que tanta vileza ficou encoberta durante tanto tempo. Escândalo que só veio à tona porque uma antiga funcionária do abatedouro infantil, sentindo-se ludibriada nos seus direitos trabalhistas, resolveu denunciar o ex-patrão. Curioso é que nunca nenhum jornal ou jornalista destes subúrbios havia escrito uma única linha a esse respeito. A maior parte alegando desconhecimento do fato. Vivêssemos numa terra de homens, não de machos e veste-calças, há muito que toda essa ignomínia já teria sido exemplarmente castigada, coibida.

Quantos inocentes, crianças pobres, ainda terão que pagar com a própria vida pelo banditismo político dos Rosendos? Onde estão os benfeitores, os paladinos desta cidade? Cadê o Lions Club, o Rotary Club, a OAB, a Maçonaria, o Ministério Público, a Igreja Católica, os conselhos de proteção à criança e ao adolescente, sempre tão omissos na defesa dos necessitados? Onde se meteram os formadores de opinião? Cadê os literatos, os poetas, o Instituto Cultural, a Academia, os imortais?... Ninguém se apresenta. Estão todos com o rabo enfiado entre as pernas, acovardados, fingindo-se de cegos e de surdos. Não há quem puna por esses inocentes. Muito menos há esperança de que essa horda de sanguessugas largue as tetas do poder.

Fecho o periódico, completamente enojado. Não raro me acomete uma antiga náusea, um repetido asco, uma telúrica vergonha de haver nascido numa terra como esta. Pois não posso ter orgulho de um povo que se acovarda tanto, muito menos adorar uma cidade onde magarefes travestidos de pediatras exterminam criancinhas pobres.

Lair Rosendo Sobrinho continua tranqüilo, certo da impunidade, caçoando do sofrimento alheio, metendo os pés pelas mãos e colecionando óbitos. É muita iniqüidade! Nem o temido cangaceiro Jararaca, injustamente acusado de espetar criancinhas na ponta de seu punhal, seria capaz de tanta barbaridade contra os pequeninos.

Bato com força nas teclas do computador e não consigo exprimir o que penso sobre esse povo que se conserva impassível enquanto suas crianças são mortas no açougue que o médico Lair Rosendo Sobrinho — num acinte zombeteiro à vida — apelidou de Casa de Saúde Danilo Rosendo.
Recosto-me na cadeira. Sinto-me exausto. O raciocínio emperra, as palavras se esgotam. Medito sobre a vilania dessa canalha e já não sei o que dizer. Exceto que tudo isso me causa nojo. Muito nojo.

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