domingo, 18 de novembro de 2007

CAPÍTULO I

Dedico este livro à memória de Vicente Ferreira de Sousa,
meu honrado e extremoso pai, que me soube explicar
os riscos da palavra e as vantagens do silêncio.
A Marilda Pereira de Sousa (minha mãe)
e a cada um dos meus oito irmãos.


“O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.”
(Gregório de Matos)


Tive ainda que esperar por quase uma hora na parada do Hotel Caraúbas. Só então é que apareceu a lata velha que me trouxe a este subúrbio. Retirei da carteira a última cédula que me restava — uma nota de cinco reais. Paguei a tarifa de um e cinqüenta e o motorista me deu o troco em moedas de variados tamanhos e diferentes valores.

O carro avançou na Murilo Rosendo, pegou a Mário Negócio e cruzou o semáforo da Geraldo Rosendo. Daí seguiu na Marechal Deodoro até manobrarmos na Prudente de Morais. Logo em seguida atravessamos a Alberto Maranhão e o ônibus enrolou à esquerda na Juvenal Lamartine. Esquivei-me entre os passageiros e me dirigi às cadeiras no fundo do veículo. Acomodei-me nos últimos bancos, preocupado com evitar que me vissem os ferimentos do braço. Tentava relaxar. Inclinei-me para a frente e escancarei as duas janelas que tinha ao meu alcance.

Na Juvenal Lamartine, assim que o veículo fez a curva, avistei a maternidade Américo Rosendo. Três quarteirões adiante estava a clínica Olívia Rosendo. Na Augusto Severo com a Rio Branco, bem próximo à Estação das Artes Irineu Rosendo, reluz o monumento de mármore do Teatro Municipal Demóstenes Rosendo, uma suntuosa homenagem ao prefeito que governou este município durante quatro mandatos.

Como vêem, há pouca coisa em Mossoró que não seja Rosendo. O eminente antropônimo aparece ainda em pelo menos duas dezenas de escolas, prontos-socorros, ginásios de esporte, casas lotéricas, postos de combustíveis, centros culturais, avenidas, ruas e praças.

A rodoviária da cidade, que um dia chamou-se Esaú Fernandes, agora é Hilário Rosendo. O mesmo se deu com o aeroporto, que deixou de ser Anchieta Vasconcelos para tornar-se Diogo Rosendo. Um conjunto habitacional construído na zona leste, com dinheiro do povo e para o povo, foi inaugurado numa noite como 30 de Setembro, mas já pela manhã o haviam convertido em Vasco Rosendo.

É o puro e simples critério da manutenção e da expansão do mito Rosendo numa terra que eles próprios apelidaram de País de Mossoró. Pois esses Sardanapalos da grande família Rosendo têm essa fome ancestral por homenagens. Na zona oeste, assim que tiveram início as obras de construção de uma faculdade particular e do badaladíssimo Mossoró West Shopping, a remota e esquecida ruazinha Felipe Francelino de Oliveira foi logo transformada (com urgência urgentíssima) em rua João Rosendo da Escócia. Até o vizinho município de São Sebastião, com cerca de quinze mil habitantes, foi rebatizado com sobrenome Rosendo.

Não está longe o dia em que mudarão o nome de Mossoró em Rosendópolis. Pois tudo gira em volta dos Rosendos. São os donos do passado, do presente e do futuro. A história local é escrita conforme o gosto e o consentimento da família Rosendo.

Em junho último, por exemplo, numa autêntica demonstração de puxa-saquismo e sem-vergonheza, o descarado professor Araripe Cassiano, notório lambe-botas da família Rosendo, assombrou o meio intelectual mossoroense com uma ‘descoberta’, no mínimo, estapafúrdia. De acordo com a ciência de berliques e berloques do referido baba-ovo, o velho patriarca Juvêncio Rosendo teria liderado uma das trincheiras que resistiram ao bando de Lampião quando do seu ataque a este município, fato acontecido aos treze de junho de mil novecentos e vinte e sete.

Conversa fiada!

Todo mundo sabe que Juvêncio Rosendo arrepiou carreira de Mossoró (rumo ao litoral) tão logo fora informado da invasão. A menos que tenha organizado a tal trincheira em alto-mar, a salvo dos punhais e da fuzilaria dos cangaceiros. Além disso, segundo rumores que se arrastam desde aquela época, Virgulino só teria posto os pés em Mossoró com o único intuito de matar o então prefeito Rodrigo Fagundes, a mando de Juvêncio Rosendo. Olhando por esse lado, portanto, a famosa exigência de quatrocentos contos de réis que o intrépido bandoleiro fizera ao prefeito, para que a cidade não fosse invadida, torna-se bastante questionável.

Certa feita, durante uma solenidade na Academia Mossoroense de Lesmas, o pesquisador Pinto Miranda, que ocupava o cargo de diretor do Museu Municipal Abílio Rosendo, abordou o assunto:

— Essa história dos quatrocentos contos de réis — exclamou o pesquisador entre os colegas de imortalidade — é pura cascata, um ardil astutamente elaborado por Juvêncio Rosendo para desviar a atenção do público! Tenho em meu poder uma série de documentos que comprovam que o velho Juvêncio, por intermédio do cangaceiro Massilon Benevides Leite, contratou Lampião para dar cabo de Rodrigo Fagundes.

No dia seguinte o Palácio da Sonolência (sede do desgoverno municipal) nomeava um novo diretor para o Museu Abílio Rosendo.

É verdade que não se pode confirmar a teoria de Pinto Miranda, posto que até hoje a suposta documentação por ele referida permanece incógnita, entretanto ninguém garante que Juvêncio Rosendo não tenha culpa no cartório. O certo mesmo é que daí para cá, com o declínio político dos Fagundes, instaurou-se o mandonismo e a supremacia dos Rosendos. São os donos de tudo, craques do arrivismo e da demagogice. De cada dez empregos surgidos em Mossoró, onze pertencem à família Rosendo, que determina quem fica e quem não fica desempregado na terra de Santa Luzia.

2 comentários:

Grupo Casarão de Poesia disse...

Já é notório o talento de Marcos Ferreiro, sua veia literária aguçada por prosa da melhor qualidade... Ansiosos ficamos pelos outros capítulos a desvendarem essa terra que desconheço, mas que sinto pulsando nas palavras do Marcos.

Um abraço do Grupo Casarão e de Iara Maria, admiradora inconteste.

Orf disse...

Muito boa a publicação do livro na forma de capítulos, entretanto para os que já leram na revista Papangu os seis primeiros capítulos, fica enfandonho - embora tenha sido prazeiroso reler este primeiro capítulo agora - esperar os demais, sugiro que sejam publicados logo os que já vieram a público, mantendo a sequencia para os demais.

Oswaldo